"A arquitectura é uma coisa muito diferente da arte. Mas esta enunciabilidade pode ser identificada em algumas obras de Anne Lacaton & Jean-Philippe Vassal. Por exemplo, a Casa em Coutras (2000) pode ser definida como: duas estufas justapostas — uma que serve de revestimento exterior a um volume que contém os espaços domésticos essenciais, outra deixada livre como amplo espaço de transição entre interior e exterior. A Casa em Lège, em Cap Ferret (1998) é: uma caixa metálica elevada sobre pilotis e atravessada pelo tronco dos longos pinheiros que ocupam o terreno. A sede de The Architecture Foundation, em Londres (2004), é: um edifício com quatro pisos amplos, todos atravessados pela escultura gigante de uma mulher sentada no chão. O FRAC Nord-Pas de Calais, em Dunkerque (2013) é: um hangar industrial existente que ganha um seu duplicado, que lhe é justaposto e que, ao contrário do original (opaco e amplo), é transparente e contém um conjunto de percursos e espaços flexíveis, sobrepostos em vários pisos. A Praça Léon Aucoc (1996) é: uma praça cuja configuração é aquela com que se encontrava. É um puro readymade. A arquitectura é uma coisa muito diferente da arte, mas a enunciabilidade — o desinvestimento naquilo que as coisas parecem, a favor daquilo que as coisas são — cumpre um propósito semelhante em ambas. A ausência de entertainment visual desvia o entendimento da obra para outro lugar: para um lugar baseado na desilusão. No limite, o desapontamento que obras deste tipo podem causar conduz à pergunta «Mas isto é arte?» ou «Mas isto é arquitectura?». E, daí, o exercício da consciência pode avançar para a questão «O que é arte?» ou «O que é arquitectura?». Portanto, longe das variações formais em torno de um modelo reconhecível de arte ou de arquitectura, trata-se de obras cujo alcance é a especulação sobre os próprios contornos daquilo que pode ser considerado «arte» ou «arquitectura». São obras auto-reflexivas. O que diferencia a arquitectura é o facto de ela ter a limitação e a oportunidade de criar obras que servem de suporte ao quotidiano. A arquitectura é feita para que nela aconteçam coisas, e não para que seja ela o acontecimento. É essa a sua especificidade enquanto prática artística. E é por isso que Anne Lacaton & Jean-Philippe Vassal, ao mesmo tempo que parecem recuperar os 100 anos de atraso da artisticidade da arquitectura, criam obras que são radicalmente arquitectónicas: espaços abertos a que quem as habita lhes invente o uso. Na arte, as práticas conceptuais esgotaram-se. A desvalorização do objecto a favor da auto-reflexividade — a favor de voltar as obras sobre si próprias — esgotou-se. Sendo a obra de arte conceptual exclusivamente sobre si própria enquanto «obra de arte», quando ela se esgota enquanto o seu próprio tema, não sobra nada. Na arquitectura não é assim. Os objectos arquitectónicos não são auto-suficientes. Na arquitectura, o apagamento do objecto (ou seja, a desvalorização do objecto enquanto tal) não conduz a um vazio. Apaga-se o objecto, mas resta a função que ele é capaz de cumprir. Resta o fundamental: a fértil capacidade desse objecto de servir de suporte ao quotidiano. Resta aquilo a que se chama «arquitectura». Pelo menos na obra de Anne Lacaton & Jean-Philippe Vassal é isso que acontece. A desvalorização «conceptualista» do objecto (um programa estético) e a valorização do uso (um programa ético) são uma e a mesma coisa. Arquitectura." José Capela
Título: Lacaton & Vassal: Mode d'emploi
Edição: 1ª
Número de páginas: 64
Ano: 2014
País: Portugal
Cidade: Porto
ISBN/ISSN: 978-989-99010-4-9
Largura (mm): 230
Altura (mm): 170
Tipo de capa: Capa flexível
Tipos de papel: Creator Silk 135 g
Tipos de encadernação: Agrafos na Espinha
Tipos de impressão: Offset digital
Notas de conteúdo: O texto “Arquitectura pela arquitectura” que aqui se reproduz foi escrito para o catálogo da exposição “Lacaton et Vassal: mode d’emploi” do fotógrafo Paulo Catrica; uma incursão fotográfica por duas obras da dupla de arquitectos franceses: o FRAC (Fundo Regional de Arte Contemporânea Nord-Pas de Calais) em Dunquerque, e a ENSA (Escola Nacional Superior de Arquitectura) em Nantes. A exposição esteve patente no CAAA – Centro para os Assuntos da Arte e da Arquitectura, Guimarães, entre 31 de Outubro e 30 de Novembro e foi comissariada por Pedro Bandeira e Ivo Oliveira. O catálogo foi editado pela Pierrot le fou em Dezembro de 2014. A “Pierrot le fou” é uma editora dedicada à fotografia, fundada em 2012 por Dulcineia Neves dos Santos, Susana Lourenço Marques, Bruno Figueiredo e Pedro Bandeira, sito em Porto e Basileia.